NARRATIVAS DO MEDO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DAS AMEAÇAS
COMUNISTAS EM PERNAMBUCO (1960 – 1964).
Erinaldo Vicente Cavalcanti
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Sobre Amaro Costa e a tremenda surra que levou
Este artigo se propõe a ampliar as discussões cerca das ameaças comunistas no Brasil e
em Pernambuco, em específico, compreendendo como se fabricou um sentimento de
medo que conduziu um conjunto de ações, de atitudes, de reações e práticas sociais
durante os anos iniciais da década de 1960. Para tanto, será necessário entender o que
foi e como se produziu esse medo – ou esses medos – e, principalmente, que funções ele
desempenhou nas relações sociais no tempo e espaço aqui pesquisados. Por meio de
relatos de memória de um militante comunista que foi perseguido, torturado e preso,
analisaremos como o medo sobre o comunismo foi praticado e usado no tempo e no
espaço em tela. O nome dele: Amaro Costa.
Relatando memória e tecendo o medo
A análise da trajetória social de Amaro Costa nos ajuda entender certos mecanismos e significados que o medo do comunismo adquiriu em Pernambuco, no período em tela. Amaro Costa tornou-se uma das lideranças comunistas mais conhecidas em Garanhuns. Nasceu no estado de Alagoas. De uma infância sofrida, aprendeu a ler sem nunca ter freqüentado a escola, tornou-se alfaiate respeitado em Garanhuns chegando a se eleger vereador da cidade pela legenda do PTB, pois o PCB, na época, estava na ilegalidade. Essa estratégia levou diversos comunistas à vitória nas eleições do final da década de 1950 e início de 1960 como enfatiza a historiadora Dulce Pandolfi (PANDOLFI, 1995). Amaro esteve envolvido em diversas lutas sociais durante as décadas de 1950 e 1960. Uma delas ocorreu na cidade de Brejão – que faz fronteira com Garanhuns, de quem era distrito na época – quando um agricultor foi expulso da fazenda onde trabalhava por ter se filiado ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brejão. Amaro
decidiu falar com o fazendeiro na tentativa de resolver o impasse. No entanto, foi severamente espancado, inclusive pelo prefeito, pelos policiais e amigos do fazendeiro, ao chegar em Brejão. Durante a pancadaria, tentou fugir, temendo por sua vida.
Deixemos que ele nos relate.
Eu tentei fugir por dentro dos cafezais, perto do cemitério, mas aí eles pularam em cima. Foi um tiroteio danado. Eu sentir... parecia um tiro, eu sentir assim aquele peso e perdi os sentidos . Cai enganchado num pé de café. Quando eu abrir o olho, tinha um com um rifle apontando para mim, dizendo “levanta comunista safado” e o outro com um revólver. (COSTA, 2005, p. 28). O comunismo, para muitos, representava uma ameaça para a sociedade. Foi criado um sentimento de medo que pulsava fervorosamente nas veias de muitas pessoas que se falava em comunismo. Medo esse que conduziu atitudes e ações como aquelas narradas por Amaro Costa.
Mas afinal, como se constituiu esse medo? Ou antes, o que é o medo? Como se elabora? Como é representado e apropriado nas relações sociais? Quais seus mecanismos de ação? Que papéis desempenha nas experiências sociais? Como se apresenta numa sociedade? E principalmente, sendo o medo, um sentimento subjetivo, que indícios deixa ele, nos documentos para que seja pesquisado? Afinal, como pesquisar o medo? Acredito que não basta ir ao arquivo e verificar ou perceber a existência do medo acerca do comunismo em virtude da grande quantidade de matérias publicadas estampando que o comunismo era uma grande ameaça destruidora. Da mesma maneira, não é suficiente ir aos arquivos e diagnosticar a existência do medo sobre o comunismo. Se faz necessário, ir além da diagnose, e entender, antes de tudo, como o medo foi criado em Pernambuco e, principalmente, quais as funções que ele desempenhou. Em outras palavras, quais as especificidades desse sentimento – o medo – no período e espaço pesquisados. Ou seja, que valores e significados foram agregados em torno do medo nos anos inicias da década de 1960. É crucial compreender que tipo de medo se sentiu, se vivenciou, se praticou em Pernambuco nesse momento. É imprescindível compreender as funções do medo nas particularidades dessa sociedade que gestou esse sentimento. Para tanto se faz necessário ampliar o diálogo da historiografia com outras áreas do saber. É indispensável a construção de certos deslocamentos analíticos e operar determinados procedimentos metodológicos. No mesmo grau de importância encontra-se á necessidade de perceber nos documentos certos indícios; aqueles rastros quase imperceptíveis a olho nu. Em outras palavras, tem que perceber nos documentos vestígios de um sentimento subjetivo; o seja, o medo. No entanto só será possível quando entendermos as múltiplas funções que o medo desempenhou no tempo e
espaços pesquisados. Ou antes, entender os tipos de medos construídos em Pernambuco no início da década de 1960. Mesmo pesquisando o medo em outro tempo/espaço, os trabalhos de Jean Delumeau, nos ajudam a compreender certos mecanismos de constituição do medo. Dependendo da perspectiva de análise, o medo pode ganhar inúmeros sentidos, significados e, portanto, deve ser pesquisado levando em consideração as especificidades do tipo de medo, ou medos, que se deseja analisar. Aquele historiador, que pesquisa o medo na França durante o período da Revolução Francesa, num artigo publicado recentemente, ele chama atenção para um aspecto do medo que às vezes é negligenciado nas pesquisas sociais, que é dimensão clínica e fisiológica do medo. O medo por esta perspectiva de análise é, segundo Delumeau, “uma emoção-choque, frequentemente, precedida de surpresa, provocada pela consciência de um perigo iminente ou presente” (DELUMEAU, 2007, p. 39). Por este prisma, o medo é um importante mecanismo de defesa até mesmo para a sobrevivência da espécie. Assim, dependendo da perspectiva de análise, o medo adquire diferentes significados. Para alguns psiquiatras e psicólogos, o medo é fundamental na medida em que atua como instrumento de defesa, pois ele aciona os mecanismos de proteção e ação diante de algo perigoso para a vida. No entanto, esta não é a dimensão do medo sobre a qual a presente pesquisa pretende analisar. O medo, sobre o qual estamos falando, é aquele que foi usado como mecanismo de controle e instrumento político, bem como o uso que dele alguns setores da sociedade fizeram. Em outras palavras, como o medo do comunismo foi gestado e praticado em Pernambuco no início da década de 1960, como foi representado, e usado este medo? Em diversas vezes, o medo foi usado como instrumento para garantir que a ordem social vigente fosse assegurada. A intolerância reinante por parte dos diferentes poderes públicos e privados, que ao menor ato de discordância ou da agitação contrárias, reagiam violentamente sobre os cidadãos, criando no tecido social uma discórdia endêmica, que refletia e também provocava medo. E o medo é assim entendido como fator social porque afeta, envolve e meche com quem exerce a violência, assim como, com quem é vítima da mesma. A historiadora Marieta de Moraes analisando o período que antecedeu ao golpe militar enfatiza que “a chamada ameaça comunista merece uma análise mais aprofundada da historiografia ” (FERREIRA, 2006, p. 25). Para tanto, ela defende que é fundamental compreender a função que o med o desempenha numa sociedade enquanto agente aglutinador que forma, organiza, incita e mobiliza ações políticas, que a primeira vista pode parecer inexplicável. Seguindo esta fenda analítica , o historiador Antonio Torres Montenegro, endossa as discussões elencadas por Marieta de Morais quando ressalta que a perspectiva de análise daquela historiadora “aponta para a necessidade de estudo de uma dimensão histórica muitas vezes difícil de ser pesquisada, pois não se apresenta de maneira muito explícita na documentação” (MONTENEGRO, 2008, p. 06). Em artigo publicado Antonio Montenegro põe em relevo a importância de estudar o medo enquanto experiência histórica. Para ele “o medo é um fenômeno muito sério. Às vezes, um sujeito bom vira cruel pelo medo. Às vezes, um sujeito apático fica dinâmico pelo medo. O medo é uma das coisas mais terríveis da humanidade” (IBIDEM, 2008, p. 17). Certamente, o medo no período e no espaço aqui pesquisados, foi utilizado para diversos fins. Serviu para perseguir, controlar, espancar e torturar. Foi também um poderoso instrumento de controle social e serviu como mecanismo para garantir a vigência da ordem estabelecida. Nesta perspectiva, o medo é sim, conforme enfatizou Montenegro, uma “coisa” terrível. Percebido nessa perspectiva, os dos praticados numa dada cultura, se institui como uma arma. Para sustentar essa asserção, Delumeau ressalta que um grupo ou um poder ameaçado, ou que se crê ameaçado e, portanto, se sente medo, tem a tendência de ver inimigos por todos os lados: fora e, cada vez mais, dentro do espaço que ele quer controlar. É nesta perspectiva que o historiador Antonio Montenegro coloca o medo com uma das “coisas” mais terríveis da humanidade. Sendo o medo um elemento que ajuda a sedimentar as relações sócias, ele cria, também, relações de pertencimentos na medida em que institui um inimigo comum; um mal onde todos os membros do grupo, da comunidade, da religião, da pátria devem combater. Assim, lutar contra o mesmo mal é fazer parte de uma sociedade que almeja os mesmos ideais; que deseja a mesma coisa ou tem projetos semelhantes. O medo, nesta perspectiva, torna-se um elemento catalisador. Ele agrega pessoas, cria valores em torno de um mesmo ideal. As pessoas passam a se unirem através do medo. A filósofa Maria Isabel Limongi destaca que “não somente os homens se associam por medo, como, uma vez associados, é o medo que dá sustentação às relações contratuais em que se constituem os vínculos civis...” (LIMONGI, 2007: 135). Assim, por medo, as pessoas são levadas a instituir alguns vínculos que ajudam a construir uma comunidade. E, é por meio do medo que as relações contratuais que formam o tecido social são capazes de unir os homens uns aos outros no interior de uma dada sociedade. O medo parece ser assim, um ingrediente que concorre na construção da vida social. E m sua constituição, o medo produz um conjunto de práticas discursivas e não discursivas que lhe dá sustentabilidade e visibilidade. É, portanto, por meio da análise dessas práticas que será possível compreender a multiplicidade de signos e significados que o medo acerca da ameaça comunista adquiriu em Pernambuco. Será possível também, como em diversos setores da sociedade instituíram esse sentimento de perigo no estado e, por conseguinte, que uso foi feito desse poderoso sentimento, que foi o medo do comunismo. Como enfatizou Antonio Montenegro, O foco da abordagem histórica e metodológica do medo se mostra fundamentalmente na análise dos discursos e práticas que são produzidos por diversos setores da sociedade instituindo a representação de que a sociedade se encontra em perigo e desgovernada. Ou seja, como a imprensa [ou parte desta], diferentes instituições da sociedade civil, setores da igreja católica, entre outras instituições, operam esta produção (MONTENEGRO, 2008, p. 18). É preciso entender que o medo é um produto social. Ou seja, foi criado; é uma produção histórico-social, com características específicas que foram elaboradas atendendo as necessidades das relações de forças onde foi fabricado. Sendo o medo uma criação ele foi instituído para desempenhar determinadas funções. E como tal, pôde ser mantido, alterado, dispensado, ou abolido. O medo, como o fogo e a roda, foi inventado, criado, produzido. Como já foi demonstrado , o medo como objeto de estudo para a historiografia, começa a despertar. Para a sociologia, o medo é um expressivo objeto de estudo. É neste movimento que se insere mm o medo do social, do sociólogo Fernando Nogueira. Neste trabalho, ele analisa as várias facetas que o medo pode adquire numa dada sociedade. Sendo o medo um produto social, este só poderá ser entendido quando analisado nas malhas sociais nas quais é tecido. O medo ganha, assim, inteligibilidade quando é percebido na trama social na qual é, simultaneamente, produto e produtor. O medo também funcionou como um sofisticado instrumento de controle, produzindo, por sua vez, efeitos de insegurança. O medo atuava como um agente corrosivo destruindo as referências legitimadoras da paz, da tranqüilidade e da segurança, criando, por conseguinte, o sentimento de perturbação e incerteza. Nessa dimensão, aqueles que se apropriam desse mecanismo terão maiores possibilidades de controlar a ação de quem pelo medo é coagido. Por esta razão a atuação destes agentes promotores de um sentimento de insegurança, é fundamental na produção e disseminação do medo, e, por conseguinte, do controle social. Fernando Nogueira destaca que o medo, de diferentes maneiras, assume nas nossas vidas uma das forças mobilizadoras ou paralizadoras mais importantes do leque de emoções. O medo e suas múltiplas representações parece estar na raiz de várias relações sociais. Temos medo do que para nós é desconhecido, ou não dominamos; bem como do novo ou daquilo que se apresenta como o diferente, como o outro, o indesejável. O medo exerceu um intenso poder sob as pessoas por ele atingidas. A fragilidade e a vulnerabilidade que o medo consegue obter a partir do mais intimo do ser humano torna-se muito mais eficiente do que a violência física de quem pretende à força impor os seus pontos de vistas, interesses e projetos. Nesta perspectiva, as análises de Pierre Bourdieu nos ajudam a entender o mecanismo de funcionamento do exercício do poder simbólico. Este poder, para Bourdieu é “um poder quase mágico, que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIEU, 2006: 14). O medo é nesta perspectiva “algo que condiciona a ação dos indivíduos, inibindo-a, por isso, e evitando que se gere, por conseqüência, mudanças nos processos s ociais”(NOGUEIRA, 2007: 73), ou que as mudanças sejam conduzidas para garantir os privilégios de uma parcela da sociedade.Estas práticas vão gerando o que poderia ser denominada de cultura do medo. Na medida em que “o desenvolvimento de uma cultura que abusivamente apropria dos medos e torna-se ela própria uma cultura do medo, cuja visibilidade radica nas mais diversificadas fontes de poder, e padrões de expressividade nas mais variadas áreas da vida social” (NOGUEIRA, 2007: 127). O desenvolvimento de uma cultura do medo constrói seus caminhos explorando mecanismos que representam catástrofes, devastação, destruição, instabilidade que acionam, por extensão, os instrumentos de insegurança. Fabricando-se o medo: a Secretaria de (In) Segurança Pública de Pernambuco O órgão que tinha – ao menos em teoria – como principal função garantir a segurança da população foi um dos que mais contribuiu para a criação e proliferação d o medo em Pernambuco. A Secretaria de Segurança Pública em suas atribuições se encarregou de disseminar pela sociedade pernambucana na época, o sentimento de insegurança, de perigo, de ameaça; ou seja, o sentimento de medo. Sendo um órgão que se destinava à segurança, este afirmava veementemente que a sociedade não teria segurança, enquanto as ideias comunistas e seus defensores não fossem extintos, porque o estado encontrava-se à beira de uma insurreição, de uma revolução com desfechos catastróficos, caso os comunistas não fossem vencidos. A Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco fez em Garanhuns um mapeamento dos “indivíduos comunistas” existentes na cidade, conforme relatório do DOPS 1 . Como a Secretaria de Segurança desejava manter sob controle as atividades desenvolvidas pelos representantes da
Delegacia de Ordem Política e Social. Para as demais citações referentes ao Prontuário Funcional de
Garanhuns, localizado no DOPS, utilizarei a sigla DOPS/PFG, seguida da página. necessário. Ou seja: o agir, o falar, as atividades desenvolvidas por eles, as estratégias de resistências, as inúmeras maneiras de atuar em cena sem ser percebido. Isso os números não mostram. Mas a quantificação também é importante e revela um significativo número de pessoas filiadas ao Partido Comunista numa cidade relativamente distante do Recife. Revela, por extensão, que as atividades do Partido estavam se disseminando pelo interior de Pernambuco e ganhando a aderência de um número cada vez maior de pessoas. Levando em consideração que o Partido Comunista estava na ilegalidade durante o recorte temporal pesquisado, o número de pessoas filiadas a este partido em Garanhuns demonstra que suas atividades não diminuíram quando este perdeu seus direitos políticos em 1947. Mais do que registrar o nome de um comunista esta atividade funcionou como um satélite que vigiava e controlava, ou ao menos tentava controlar, aqueles que a Secretaria julgava uma ameaça à sociedade A Delegacia Auxiliar de Polícia de Garanhuns fez uma cartografia do comunismo na cidade e criou um banco de dados constando o nome de diversas pessoas ligadas ao Partido Comunista. A quantidade de detalhes sobre os comunistas fichados pela Delegacia mostra a preocupação que eles representavam para aquele órgão. Ao mesmo tempo, demonstra também a eficácia do aparato estadual da Secretaria de Segurança ao fazer um levantamento detalhado de quem eram os comunistas, de onde vinham, como chegavam, porque vinham e com quem se relacionavam ao chegar a Garanhuns e qual as atividades que desempenhavam na cidade. Foi o caso – dentre outros – do advogado da prefeitura local, que “foi elemento de destacada atuação em favor do comunismo. Depois de conseguir essa nomeação, diz-se afastado do partido, porém continua mantendo constantes contatos
com os comunistas e esquerdistas locais, continuando a servir a seu credo discretamente” (DOPS/PFG, p. 12). Aquelas pessoas eram constantemente vigiadas pelos agentes da Secretaria de Segurança e funcionários da Delegacia Auxiliar de Polícia de Garanhuns. Diante de uma atitude, julgada pela Secretaria de Segurança, como uma ameaça aos considerados bons costumes sociais, as autoridades policiais saberiam localizá-los rapidamente. Este aparato funcionava como um arquivo, onde se guardavam parte da vida de muitas pessoas cons ideradas perigosas, por representarem as ideias comunistas; era um acervo onde se arquivavam informações sobre os comportamentos dos comunistas de Garanhuns. Recorria-se a ele quando se desejava prender algum comunista. Para a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, “as autoridades policiais organizaram seus arquivos segundo critérios próprios, os quais devem ser considerados como uma das mais expressivas formas de controle das atividades clandestinas de intelectuais, gráficas, editoras e livreiros no Brasil” (CARNEIRO, 2002, p. 51). Cada objeto apreendido funcionava como prova (revistas, livros, selos, envelopes, cartas de correspondências, bilhetes, cheques, jornais) denunciando seus donos de atividades subversivas. Nesta dimensão “as anotações registradas pela polícia à margem dos documentos e os destaques com lápis colorido sublinhando os conteúdos ‘subversivos’ são testemunhos do universo simbólico representativo dos valores endossados pelas autoridades policiais” (IBIDEM, p. 64). Amaro Costa relembra emocionado, que quando foi preso em 1964, os policiais ao invadirem sua casa, prenderam diversos livros, considerado pelas autoridades policiais, como literatura subversiva. Entre eles encontravam-se alguns títulos do escritor baiano, Jorge Amado. Segundo Amaro, aquele material serviu como prova do envolvimento dele com as ideias comunistas . Amaro Costa destaca que durante sua infância “só ouvia todo mundo falar que o Partido Comunista era uma desgraça” (COSTA, 2005, p. 03). Ao revisitar aquelas experiências ele atribuiu a concepção de que o PCB era uma desgraça à propaganda desenvolvida no estado de Alagoas, que segun do Amaro, o governo daquele estado adotou como estratégia a utilização de cartazes e distribuição de folhetos nos quais encontravam-se um homem forte com um chicote na mão c astigando os trabalhadores que estavam amarrados com uma corrente pelos pés e com uma garrafa de cacha-ça no bolso. A tentativa do governo de Alagoas em construir uma imagem negativizada do comunismo brota em suas lembranças tecendo seus relatos de memória. Para ele aquele governo tentava sedimentar a ideia de que no regime comunista o trabalhador não tem nenhuma liberdade de ação. Eram escravizados, torturados, bêbados e submetidos a uma extenuante jornada de trabalho sob o julgo de um impiedoso capataz que vigiava todos os passos dos trabalhadores. Em outras palavras, na propaganda anticomunista relatada na memória de Amaro Costa, no regime comunista não havia liberdade nem tampouco democracia. Para a Secretaria de Segurança do estado de Pernambuco a crescente ameaça comunista tornava obrigatório o serviço de vigilância e controle que desempenhava. Era importante para a Secretaria vigiar também as pessoas com quem os comunistas conviviam; saber com quem os referidos comunistas se relacionavam. Era preciso saber qual era seu círculo de convivência; em qual rede estavam inseridos. Afinal quem eram seus amigos? O que faziam eles? Pretendia-se conhecer as relações sociais nas quais os comunistas da cidade estavam inseridos. Dessa prática desenvolvida por aquela delegacia resultou uma relação com o nome dos amigos do Partido Comunista de Garanhuns e como eles contribuíam com aquela agremiação partidária. Descobriu-se que em Garanhuns havia “o círculo de amigos do Partido Comunista em Garanhuns, que sustentam o mesmo partido com somas apreciáveis” (DOPS/PFG, p. 13). O circulo de amigos do Partido Comunista em Garanhuns era composto por vereadores e ex-vereadores, comerciantes e ex-comerciantes, deputado e classificador de algodão, este último, contribuindo com trinta cruzeiros mensais. Não era desprovido de intenções que estas pessoas apareciam diferenciadas por suas profissões. Identificar a profissão era uma forma de alertar que a cidade de Garanhuns estava permeada por comunistas, ou simpatizantes, de diferentes grupos sociais. Havia representantes daquele partido no Legislativo Municipal, no comércio e também no Legislativo Estadual. O comunismo estava, portanto, se alastrando por vários segmentos sociais. Amaro Costa, durante seu mandato, defendeu diversas vêzes na Câmara de Vereadores de Garanhuns moção de repúdio ao governo norte-americano, principalmente, quando das invasões deste ao território cubano enquanto elogiava Fidel Castro pela resistência e luta na defesa da soberania da sua pátria. Também lutou na Tribuna da Câmara para que João Goulart fosse empossado quando da renúncia de Jânio Quadros solicitando que o Legislativo Municipal fizesse uma campanha junto às demais Câmaras de Pernambuco em defesa da legalidade e respeito à Constituição. Diversas vezes propôs que aquela casa enviasse votos de congratulações a Leonel Brizola por sua luta em defesa da posse de Jango. Suas propostas e atitudes ajudaram a tecê-lo como um expressivo agente comunista na cidade. Seus projetos, às vezes, serviram de prova para incriminá-lo por atividade subversiva. Sua visita à Cuba rendeu diversas críticas de seus opositores ajudando simultaneamente a sedimentar sua imagem de atuante comunista em Garanhuns.Já fazia parte do Partido Comunista quando recebeu deste o convite para ir à Cuba. Esta foi uma experiência marcante na vida do al a aa lfaiate, como relembrou emocionado. Chegamos em Cuba por volta de cinco horas da tarde, devia ser uma sete horas lá. Quem nos recebeu foi um representante do governo. Fez um discurso no aeroporto, dali fui para o hotel. Me encantei com o hotel. Nunca tinha visto um negócio daquele. Quando pisava, os pés afundavam todinho no tapete. Aqueles camponeses estavam com a gente também. (COSTA, 2005, p. 20). Ao relatar aquela experiência, Amaro destaca a relação de proximidade entre o governo Fidel e os trabalhadores. Ficou encantado com a dedicação que a população de Cuba tinha por Fidel. Para ele isso era resultado da política que o governo adotou priorizando a melhoria da população menos favorecida. E apenas os poucos burgueses, em Cuba, era quem não simpatizavam com Fidel Castro. Ao retornar a Garanhuns discursou na Câmara de Vereadores destacando “o grande avanço que tinha percebido na Ilha de Fidel Castro e a satisfação da população com o sistema político implantado em Cuba, onde o analfabetismo e a pobreza tinham reduzido consideravelmente”. Para Amaro o comunismo era sem sombra de dúvida o melhor projeto político a ser adotado no Brasil. O ser comunista é constituído pelas ações; nas palavras, nos posicionamentos e nas atitudes dos indivíduos. Em outras palavras, os indivíduos tornam-se comunistas nas relações sociais gestadas nas experiências históricas. É nas práticas cotidianas, como ceder seu espaço de trabalho para reuniões com os representantes do partido, como fizera o alfaiate José Guedes; colocar faixas com o nome de candidatos apoiados pelos comunistas, ou visitar Fidel Castro, como fez Amaro Costa; demonstrar apoio à política cubana, como fez diversas vezes o vereador José Cardoso; ser membro de uma associação de bairro, ou dono de uma alfaiataria como o alfaiate Siloé Passos; ter clientes em seus esbelecimentos que eram comunistas; trabalhar para patrões ligados ao partido; instalar em sua hospedaria cidadãos ligados ao comunismo; ter amigos comunistas; não demonstrar oposição ao partido; fazer parte do Grêmio Literário e defender o abatimento de 50% nas entradas de cinema para os estudantes, ou combater o integralismo, como fez Rildo Souto Maior, militante do Partido Comunista em Garanhuns e depois em Recife, onde passou a residir; participar dos estudos sobre o partido; fazer parte ou ser simpatizante da UJC (União da Juventude Comunista); ser leitor dos jornais Folha do Povo, Voz Operária; fazer reuniões à noite em lugares considerados suspeitos pela polícia – como as alfaiatarias, eram atitudes que concorriam para formar o ser comunista em Garanhuns. A filiação ao Partido Comunista era motivo inconteste para uma pessoa ser considerada comunista. No entanto, é justamente aquelas que não tinham seus nomes
agregados ao PCB ou a outro partido de esquerda e constavam como comunistas que revelam indícios do ser comunista. Certamente o ser comunista é antes de tudo uma construção temporal e espacial. Em outras palavras, ser um comunista é uma construção que se constitui, se fundamenta, se justifica, ganha especificidade e existência nas relações sociais. É na diferenciação de um não comunista que se elabora um comunista. É na constituição de um outro, que se forja um comunista. Ser um comunista não era penas ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro. No tempo e no espaço aqui pesquisados, ter um amigo filiado ao PCB, era um forte indício que ser também um comunista. Ter um espaço de trabalho frequentado por comunistas era indicativo de sua aproximação com as idéias vermelhas. Andar com aqueles que eram considerados comunistas era um poderoso vestígio de ser considerado com tal. Essas práticas eram resultantes de uma política de constante vigilância e controle que concorriam na constituição de uma cultura do medo em Pernambuco. A Secretaria de Segurança Pública do estado, juntamente com órgãos civis e instituições religiosas produziram um sentimento de permanente insegurança e intranquilidade, fabricando um sentimento permanente de medo e instabilidade. Este sentimento foi em larga medida responsável por incitar certas atitudes em boa parte da p ma vida tranquila deveria ser vigia permanente contra esse mal comum: o comunismo. E todo bom cidadão deveria denunciar qualquer suspeita de subversão para a segurança de todos. Dessa forma o medo do comunismo foi cuidadosamente produzido se constituindo numa espécie de corrente aglutinadora que unia sob a mesma égide diversas pessoas para lutarem pelo mesmo objetivo: banir o comunismo e seus representantes, segui-los, vigiá-los e rastreá-los tornaram-se práticas constantes daquele órgão. Na medida em que fazia um mapeamento dos passos dos comunistas na cidade de Garanhuns, o estado pôde elaborar uma cartografia da atuação comunista naquele espaço, haja vista que a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, mantinha em seus arquivos os nomes, endereços, data de nascimento, apelidos, profissão entre outras informações, acerca dos suspeitos. A Secretaria dispunha em seus arquivos da ficha de aproximadamente duzentas e cinqüenta pessoas, que estavam filiadas ao Partido Comunista, na cidade de Garanhuns, segundo aquele órgão. Contudo, relatar a quantidade de pessoas que estiveram envolvidas com o Partido Comunista em Garanhuns, apenas em números, é deixar de lado aquilo que mais nos interessa.
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